Deus é um cara simpático, sabe? Mas bastante autoritário. Assim que soube que teria a chance de voltar à vida, ele me pôs de frente com vários perfis contorcidos, modelos de infelicidade e atores de uma peça solitária e mandou que escolhesse em qual deles voltaria à Terra. Todo majestoso, bateu palmas e diversas opções aparecem em um holograma. Ele me recitava cada mínimo detalhe que aquele pobre ser iria sofrer e eu, se o escolhesse, obviamente, teria de enfrentá-lo.
_ Senhor, prefiro não escolher
_ Preferes ficar aqui no céu, fazendo-me companhia? - disse com voz de trovão
_ Não, claro que não - Ele me olhou de lado e antes que pensasse errado de mim, apressei-me em explicar. _ Não que aqui não seja o Paraíso, literalmente - fiz graça. _ Mas escolher entre tantas opções, digamos, declinantes, é prefirível tirar a sorte.
_ Decidir seu destino pela sorte? Que belo covarde, não?
_ Talvez eu seja - constrangi-me com aquele julgamento celestial fora de hora. Já tinha passado pelo Purgatório, oras.
_ Certo. Vá com Deus, ops, comigo mesmo! - brincou o Todo Poderoso. _ E boa sorte. Seu corpo já fora escolhido.
Depois de uma viagem rápida pelo escorrega que me trouxe de volta à Terra, lá estava eu, em um novo corpo. Abri os olhos e uma luz clara de hospital quase me cegou. Seria um recém-nascido? Ninguém me disse que esse recomeçar significava recomeçar do começo exatamente. Olhei para minhas mãos e eram de um adulto e estavam com uma agulha pendurada em cada. É, estava mesmo em um hospital. O médico chegou pra me contar novidades
_ Vejo que está acordado! Fico feliz. Depois de tanto tempo. Não esperávamos que voltasse. Parece que alguém lá em cima gosta muito de você. - "É o que veremos", pensei.
_ Doutor, o que faço no hospital?
_ Ah, digno não se lembrar de muita coisa. Você tentou se matar a um ano e meio. Tomou remédios, bebeu e injetou drogas ilícitas. Foi trazido as pressas pro hospital e cuidamos de você todo esse tempo, mas confesso que nossas esperanças se esvaziavam a cada dia.
_ Por que tentei me matar? - perguntei pasmo.
_ Não sabemos exatamente. Parece que o senhor não tem família. Uma moça nos contou que foi por amor, mas não entrou em detalhes. Ela te faz visitas constantemente e não permitiu que desligássemos os aparelhos.
Sai do hospital uma semana depois, ainda sem conhecer a moça que me dera um corpo na Terra. Instalaram-me onde deveria ser minha antiga casa. Um lugar aconchegante que fez com que eu me sentisse vivo novamente.
Uma carta escorregou pela soleira da porta duas semanas depois do meu adeus a todos os lugares excessivamente brancos aos quais eu visitara nos últimos tempos: céu e hospital. O fato inesperado de receber notícias do mundo me fez correr para ler as novidades.
"Olá querido,
Você fugiu por um ano e meio, ein? Senti-me no direito de sumir por duas semanas. Desculpe pela demora, mas apesar de estar sempre ali - como você já deve saber -, não esperava que fosse sair daquela cama.
Acostumei-me em ver a dor estampada em seu rosto. Sua boca contorcida, seus olhos fechados com força, como se pedissem 'por favor, não me deixem ver o que vai me acontecer'.
O que deu em você pra tentar se matar? Acabar com a sua carreira de músico e destruir sua vida assim... Sinto muito se em algum momento pedi pelo fim, mas eu precisava. Você estava ficando transtornado com o sucesso e eu não conseguia mais acompanhar essa vida. Parecia não ter mais espaço para o amor na vida do astro.
Não quero ser rude, longe de mim. O amor que sinto por você é tão grande, querido. Ficaria ao seu lado por muitas e muitas vezes. Não importa o que você fizesse, poderia enfrentar mares, tempestades e monstros ao seu lado.
Certa vez você me disse que não há coragem maior do que aquela que o amor nos trás. Você me trouxe coragem pra te amar e enfrentar tudo. Você é um cara corajoso, afinal. Nunca abandonou um sonho ou uma ideia - até essa idiota de se matar.
Queria dizer que te amo, que te quero mais do que nunca. Desejo pelo seu bem e prometo estar ao seu lado para reconstruirmos nossas vidas juntos, porque não sou nada sem você. Infinitamente nada.
Com amor,
Aquela que nunca lhe abandonou"
Virei a carta, chequei o endereço e corri, ainda que trôpego. Corri e agradeci a Deus por ter feito aquela escolha. Que sorriso bangela ele acabara de me mandar. Fui ao encontro dessa mulher que não conhecia, mas com a qual me sentia disposto a iniciar uma vida ao seu lado. Depois de viver como covarde, fugindo do amor, lá estava eu, correndo para viver só dele.